Uma Mulher Casada: Fragmentos de desejos e do gozo feminino.
- Kelly Arelari
- 30 de out. de 2019
- 6 min de leitura
Atualizado: 5 de mar. de 2021

Une Femme Marieé (1964) — Uma mulher casada — de Jean-Luc Godard, nos apresenta os conflitos de Charlotte (Macha Méril). Esposa de Pierre (Philippe Leroy), marido ausente devido sua profissão, que acaba por envolver-se com Robert (Bernard Noël), um charmoso ator e apaixonado amante. O filme explora então as contradições entre a representação do papel de esposa e seus verdadeiros desejos subjetivos.
Se “o plano é o significante no cinema, ou melhor, é a letra do cinema” (Dunker, Rodrigues, 2015, p.23) nesta obra, Godard escreve com todas elas: FALTA. Desde as escolhas simbólicas à escala tonal das imagens, tudo nos preenche e esvazia ao mesmo tempo.
Logo nos primeiros minutos, três cartões de texto são expostos: “Fragmentos de um filme rodado em 1964” — “um filme em preto…” — “ebranco”. De fato, fragmentos, não só de planos, mas de corpos até então sem Eu nem Outro. Uma mão feminina avança em direção ao centro da tela e logo podemos ver a aliança em seu dedo, símbolo máximo da convenção cultural que é o casamento. Em seguida, uma mão masculina agarra o pulso da mulher, mão essa sem o anel. Faz-se a Semiose. (Santaella, 2003).
Uma série de close-ups mapeiam os corpos de ambos (até então) não-sujeitos, entre costas, abdomens, joelhos, braços e ombros, os dois dialogam sobre seu “amor”.
“Eu não sei..”, indaga Charlotte… / “Não sabe se me ama?” / “Por que continua falando? É tão bom assim…”
Segundo Ferreira Neto (2013, p. 183):
O fato de sermos seres falantes nos coloca diante de muitos mal-entendidos com relação ao nosso próprio desejo. É o que encontramos em Lacan (1966c, p.634): “deve-se afirmar que, obra de um animal presa da linguagem, o desejo do homem é o desejo do Outro”.
Assim, se dá o tom do filme. O preto e branco com baixo contraste torna-o cinzento, sem profundidade, quase mesclando personagens e cenários, que por sua vez chegam a ser irrelevantes, como se o vazio subjetivo de Charlotte a impedisse de se importar com o que existe ao seu redor.
Passam-se quase oito minutos até que possamos efetivamente ver o rosto dela. Os homens são sempre apresentados de costas, deixando claro que estes são apenas objetos-causa da pulsão de Charlotte que, entre marido e amante tenta preencher sua falta essencial.
…pois o objeto do desejo ou é um logro ou é uma fantasia que, em relação ao desejo não cumpre papel de objeto, mas de suporte ou sustentação, uma vez que o objeto do desejo é a causa do desejo, o mesmo objeto faltante a, eternamente perdido, “em torno do qual gira a pulsão”. (ibid.,p.229). Mais uma vez o objeto a aparece como falta, lá onde se busca o pleno. (Santaella, 2013, p.105).
Devido às duras censuras sofridas na época de seu lançamento, Godard foi convidado a fazer uma série de modificações para que o filme pudesse estrear. Curiosamente, uma dessas alterações o obrigou a mudar o título de “A mulher casada” para “Uma mulher casada”, visto que a censura julgou que “A” sugestionasse uma normalização do adultério feminino. Mal sabiam a força simbólica de sua intervenção. Segundo Ferreita Neto (2013, p.189):
Pela lógica Aristotélica, o artigo definido, no caso de “O homem”, é universalizante. Essa é a razão pela qual Lacan defende que não há A mulher (p.98), com artigo definido, mas uma mulher, cada mulher. Sendo assim, o que falta a mulher é um significante que a nomeie, não é nada da ordem da anatomia. O avanço que Lacan vem trazer é no sentido de que, se o que falta para uma mulher é um significante, então estamos diante de uma questão cultural e não biológica, como pensava Freud.
Apesar disso, a personagem Charlotte, por si só nos trás um significante essencial. Cada mulher é uma, com seus gozos e angústias, mas o recorte sócio-cultural que à envolve nos apresenta um sintoma universal: o da mulher que se vê perdendo sua subjetividade e tornando-se ‘a’ mãe, ‘a’ esposa, tendo sua femininidade recalcada. Vendo o retorno desta recalcada dando-se através do sofrimento, das dores, da histeria. (Rossi, 2013, p. 205) Aqui Charlotte busca, por outros meios, realizar seus desejos. Godard, então, subverte a representação feminina natural à época colocando-a num lugar que, até então, era comum apenas aos homens.
Dominante, o cinema feito em Hollywood é construído de acordo com o inconsciente patriarcal; as narrativas dos filmes são organizadas por meio de linguagem e discurso masculinos que paralelizam-se ao discurso do inconsciente. No cinema as mulheres não funcionam, portanto, como significantes de um significado (a mulher real) como supunham as críticas sociológicas, mas como significante e significado suprimidos para dar lugar a um signo que representa alguma coisa no inconsciente masculino. (Kaplan, 1995, p. 53).
A personagem passa a buscar satisfazer seu gozo por meios narcísicos e individualistas, criando situações que façam com que marido e amante tenham que provar, constantemente, o valor de seus sentimentos; comparando-se com modelos em fotos de revista e almejando a posição das mesmas; desafiando os padrões e convenções sociais nas quais está inserida. Segundo nos apontam Salem e Junior (2010, p. 190)
…o sujeito sentimental, caracterizado pela valorização da interioridade psicológica como um espaço no qual estariam contidos pensamentos, desejos, crenças e intenções passíveis de uma atitude introspectiva e interpretativa, viria a conviver crescentemente com configurações subjetivas que se organizam na exterioridade visível da imagem corporal e no escrutínio e fruição das sensações físicas. Deixando de lado as regras sentimentais de outrora e o acesso à vida interior como um dos focos privilegiados para a construção dos ideais de eu, tais construções identitárias estariam sendo pautadas em repertórios de caráter menos intimista que, dentre outras consequências, tornariam a experiência subjetiva avessa à experiência de conflito interno e menos referida à sua dimensão privada e indiossincrática (apud BEZERRA, 2002).
Freud reflete sobre o ser humano tornar-se neurótico devido as frustrações impostas pela sociedade a serviço dos ideias culturais (2010, p, 84), aqui faz-se uma leitura perfeita não só da frustração, mas da apatia que envolve Charlotte. Durante uma conversa sobre passado, presente e futuro ela explicita:
“Memória, tudo isso, não bom. Prefiro o presente. É mais… é mais excitante. Gosto de música. Gosto de coisas que acabam, gosto de flores, gosto… do amor. Amor, você têm que vivê-lo. Viver no presente, porque se não há presente não pode viver. A coisa mais importante para mim é entender o que está acontecendo. Entender o que vai e tentar comparar com tudo que conheço, que vi nos outros. É difícil (fazer isso) no presente. Por isso gosto porque no presente não tenho tempo para pensar. Não penso. Não posso entender, o presente é mais forte do que eu. O que amo, o que me fascina é esse elemento que me escapa, que não posso controlar. Disso que gosto. Gostaria de controlar porque não posso me ajudar e não sou um animal. As vezes sinto muito por não ser, gosto de animais, são tão naturais, seus movimentos sempre são bonitos. Mas somos programados para entender. Bem, sou feliz? Não, não sou feliz porque exatamente, não tenho vida no presente. Sou bastante clara a mim mesma, não me surpreendo com nada que me acontece. Há muitas coisas das quais me envergonho porque quando aconteceram não fui capaz de me preparar e me envergonhei. Mas enquanto acontecia não, não durante o presente, porque no presente não posso, me escapa, não sei o que acontece. O presente mantém a pessoa louca”
O que poderia querer Charlotte, então? Lacan nos responde “mais, ainda” (Ferreira Neto, 2013, p. 190). Godard nos presenteia, então, com uma personagem não-toda, desejante, em sua representação mais real e subvertida. A mulher que a cultura tenta preencher com símbolos e significações exteriores, títulos sociais, mas que sempre traz o peso fálico, o significante da falta, o desejo castrado. (Ferreira Neto, 2013, p. 191).
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FICHA TÉCNICA
Título: Une femme marieé.
Título do filme no Brasil: Uma mulher casada.
Tipo de filme: Longa-metragem.
Gênero: Drama.
Direção: Jean-Luc Godard.
Elenco: Macha Méril; Bernard Noël; Philippe Leroy.
Roteiro: Jean-Luc Godard.
Duração: 95 minutos.
País de origem: França.
Ano de lançamento: 1964.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CESAROTTO, O; LEITE, M.P. O que é psicanálise? São Paulo. Ed. Brasiliense, 1992.
DUNKER, Christian; RODRIGUES, Ana Lucilia. Cinema e psicanálise — A criação do desejo, 2ª Ed. São Paulo: NVersos, 2015. v. 1.
FREUD, S. O mal-estar na cultura (1856–1939). Trad. Renato Zwick. 2ed. Porto Alegre: L&PM, 2015 .
FREUD, S. Obras completas — Introdução ao narcisismo, Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914–1916). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 12.
KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema — Os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
LACAN, J. (1949) “O estádio do espelho como formador da função do eu, tal como nos foi revelado na experiência analítica” [ Links ].
SALEM, Pedro; JUNIOR, Nelson E. C. Corporeidade e ação nos processo de formação do eu. Artigo: Estudos de psicologia, 15, maio — agosto, 2010. (p. 189–197).
SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica?. São Paulo: Brasiliense, 2003.
SANTAELLA, Lúcia; HISGAIL, Fani. Semiótica Psicanalítica — clínica da cultura. São Paulo: Editora Iluminuras, 2013. (p. 105; 183; 189; 190; 191; 205).
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